A pressa para desbancar a rival e as avaliações de segurança que ficaram a cargo da Boeing podem ter sido os motivos que levaram à queda de dois aviões da montadora em menos de 6 meses.
O acidente com o voo da Lion Air aconteceu em outubro de 2018 quando seguia para a Indonésia. Cinco meses depois, em março de 2019, um voo da Ethiopian Airlines caiu na Etiópia. Nos dois casos, o avião utilizado era o 737 Max.
Uma matéria investigativa do jornal americano The New York Times revelou que a Administração Federal de Aviação – departamento responsável por regulamentar e supervisionar a aviação civil nos Estados Unidos – havia delegado às montadoras a autonomia para supervisionar a própria produção.
Como o compartilhamento de informações não era exigido pela AFA, a Boeing deixou a reguladora no escuro sobre as mudanças no software MCAS, usado em versões mais antigas da aeronave.
Somente depois do primeiro acidente, os engenheiros da agência perceberam que não compreendiam e nem tinham informações sobre o sistema usado pela montadora para evitar a perda de sustentação.
Isso porque os reguladores nunca avaliaram de forma independente os riscos do MCAS quando certificaram o avião em 2017.
Mudanças no processo regulatório
De acordo com a matéria do The New York Times, a Administração Federal de Aviação promoveu mudanças no processo regulatório em 2005.
A agência adotou regras que davam às montadoras mais controle. Antes, a agência determinava os engenheiros que trabalhariam em seu nome. Com as novas regras, a Boeing poderia escolher, mas a AFA tinha poder de veto.
Diversos líderes da reguladora aprovaram a mudança porque permitia que houvesse a certificação dos aviões com mais eficiência, otimizando o uso dos limitados recursos de uma agência federal. Segundo o NYT, a AFA também estava com dificuldades para contratar engenheiros bons devido aos altos salários.
Por outro lado, alguns engenheiros demonstraram preocupação com as novas regras, que poderiam dificultar o monitoramento do que acontecia dentro da Boeing. A engenheira da AFA ouvida pelo NYT, Nicole Potter, disse que a agência pedia repetidamente que ela deixasse de aprovar documentos de segurança. Segundo ela, quando os funcionários da reguladora não tinham tempo, os gerentes poderiam delegar o serviço para a Boeing.
De acordo com um oficial da agência, em 2018, a AFA deixava a companhia certificar 96% do próprio trabalho.
Rivalidade
Em 2011, a American Airlines – que tinha sido cliente exclusiva da Boeing por mais de uma década – estava pronta para encomendar centenas de aviões com consumo mais eficiente de combustível da Airbus. O chefe-executivo da companhia aérea, Gerard Arpey, ligou para o líder da Boeing, W. James McNerney Junior, e avisou que se a montadora quisesse fechar negócio, era preciso trabalhar com mais agressividade.
Para desbancar a rival, a Boeing deixou de lado o desenvolvimento de um novo avião – que levaria pelo menos 10 anos – e decidiu fazer uma atualização no 737 Max, com a promessa de que ficaria pronto em 6 anos.
O desenvolvimento do 737 Max
No início do desenvolvimento do 737 Max, os engenheiros da AFA perceberam que havia problema com os motores. De acordo com os profissionais, eventuais danos no equipamento poderiam prejudicar os cabos que controlam a aeronave. Os engenheiros sugeriram duas mudanças, mas a Boeing não aceitou porque qualquer modificações poderia causar atrasos no cronograma de entrega das aeronaves. Os engenheiros da empresa rebateram os federais e disseram que dificilmente os cabos do leme seriam comprometidos. O supervisor Jeff Duven concordou com a Boeing.
Dois documentos obtidos pelo The New York Times mostraram que os gerentes da AFA achavam que o 737 Max não respeitava as diretrizes de proteção dos controles de voo, mas a reguladora levava em consideração o prazo estipulado pela Boeing. Um dos gerentes escreveu que seria impraticável resolver a questão “a essa altura do programa”.
Um dos funcionários fez uma denúncia anônima ao conselho de segurança interna da AFA, que resultou em uma investigação. O Conselho advertiu para os riscos de permitir que a Boeing lidasse sozinha com esse tipo de aprovação, dizendo que os interesses da companhia estavam focados em minimizar custos e impactos no cronograma. No entanto, a agência já tinha dado à Boeing o direito de aprovar os cabos, que foram instalados no avião.
Outra modificação importante feita pela montadora foi no software que garantia a sustentação da aeronave. Enquanto a versão anterior só era acionada em altas velocidades e movia o estabilizador do avião em 0,6 graus, a nova poderia funcionar em baixas velocidades e movia em até 2,5 graus. Na prática, a mudança fez com que o nariz do avião fosse empurrado em direção ao solo quando acionado o sistema, quase impossibilitando que o piloto retomasse o controle.
Enquanto a Boeing corria para terminar o 737 Max em 2016, os diretores da agência deram à ela o poder para aprovar uma série de importantes avaliações de segurança. Sem informações detalhadas sobre as mudanças no sistema, a AFA acreditou que o MCAS era de baixo risco.
Durante o desenvolvimento do avião, dois engenheiros experientes deixaram a AFA. Juntos, os dois tinham 50 anos de experiência. Eles foram substituídos por um engenheiro que tinha pouca experiência em controle de voo e outro que tinha terminado o mestrado havia apenas 3 anos. Pessoas que trabalharam com eles contaram ao NYT que eles não possuíam conhecimento suficiente para entender um sistema complexo como o MCAS.
As mudanças no processo regulatório permitiram que a empresa nunca submetesse às mudanças no sistema da agência. No escuro e sem o conhecimento necessário, os engenheiros responsáveis certificaram o avião como seguro e não exigiram novos treinamentos de pilotos. A Boeing pediu para retirar as menções ao software do manual do piloto e a agência concordou. A AFA também não mencionou o MCAS em suas descrições detalhadas, dando recomendações antigas para o novo sistema.
De acordo com as pessoas ouvidas pelo NYT, um piloto de teste sabia das mudanças, mas o trabalho dele era apenas avaliar como o avião voava e não determinar a segurança do sistema. Ainda segundo ex-funcionários, líderes da AFA constantemente anulavam recomendações do próprio staff.
Acidentes
O primeiro desastre foi em 29 de outubro de 2018 com o avião da Lion Air. Investigações apontaram que a aeronave forçou o nariz em direção ao solo dezenas de vezes nos primeiros 11 minutos de voo. O acidente aconteceu 13 minutos após a decolagem na costa de Java, na Indonésia. Todas as 189 pessoas a bordo morreram.
Quando os engenheiros da AFA foram pesquisar os documentos internos para entender as causas do acidente, perceberam que não havia registros de que o software poderia puxar repetidamente o nariz do avião em direção ao solo.
A agência não quis proibir o voo dos 737 Max e publicou uma nota lembrando os pilotos dos procedimentos de emergência.
Cinco meses depois, um novo acidente envolvendo o 737 Max deixou 157 mortos. O voo da Ethiopian Airlines caiu 6 minutos após a decolagem na capital da Etiópia, Adis Abeba.
Depois do segundo desastre aéreo, a AFA proibiu o voo do 737 Max nos Estados Unidos e recomendou que outros países fizessem o mesmo.
O executivo Ali Bahrami
De acordo com as revelações do New York Times, um dos líderes da AFA em Seattle teve papel fundamental para permitir a delegação das avaliações de segurança para a Boeing.
Antes do início da certificação do 737 Max, Bahrami chamou um grupo de engenheiros da AFA e perguntou se queriam participar do departamento que seria responsável por fiscalizar o desenvolvimento da nova aeronave, o “The Boeing Avation Safety Oversight Office”. A maior parte não quis, segundo uma queixa da Associação Nacional de Controles do Tráfego Aéreo. Um dos engenheiros contou ao NYT que foi chamado para participar do departamento após sair de um cirurgia e estava sob efeito de drogas quando concordou. Segundo o ex-vice presidente da AFA, Bahrami teria colocado gerentes que iriam beneficiar a Boeing, com objetivo de abdicar tarefas para a montadora.
O executivo também foi responsável por extenso lobby no Congresso norte-americano para que fosse permitida a máxima delegação às montadoras. Depois de mais de 20 anos na AFA, Bahrami foi trabalhar na Associação da Indústria Aeroespacial, grupo que representa a Boeing e outras empresas. Depois de 4 anos na Associação, ele retornou à AFA como chefe da área de Segurança.
As investigaões
Procuradores federais e legisladores investigam se o processo regulatório da AFA é falho. Também existe uma força-tarefa apurando como e por qual motivo o 737 Max foi aprovado.
Os aviões deste modelo continuam proibidos de voar. De acordo com a AFA, ele só voltará a ser utilizado se for comprovada a segurança da aeronave.
De acordo com a última atualização da agência, novas investigações verificaram potenciais riscos nas mudanças feitas pela Boeing que devem ser mitigados pela empresa. A agência também informou que abriu um painel independente para revisar as fiscalização do 737 Max antes de autorizar novas atividades.
A Boeing afirmou que se a proibição do voo continuar por mais tempo será forçada a parar a produção da aeronave.
As investigações sobre os acidentes na Indonésia, em 2018, e na Etiópia, em 2019, continuam.
https://ift.tt/311a13W https://ift.tt/2Utik5O
Nenhum comentário:
Postar um comentário